Por que o Brasil deve unificar as idades de aposentadoria rural e urbana

Por IPC-IG

Análise detida dos dados disponíveis não sustenta as atuais regras da previdência social, que precisam ser reformadas para garantir a equidade

                                 

 

"Por Luis Henrique Paiva, Matheus Stivali e Leonardo Alves Rangel (*)



É justificável que os trabalhadores rurais se aposentem mais cedo? Eles têm uma rotina cansativa de trabalho, além de começarem a trabalhar mais jovens, serem mais pobres e terem menos acesso à saúde que os urbanos. Esses são alguns dos principais argumentos utilizados pelos defensores da aposentadoria antecipada para esse grupo, mas se mostram como mais um mito, bastante difundido durante as discussões da reforma da previdência. No trabalho “Devemos unificar as idades de elegibilidade das previdências urbana e rural?”, que publicaremos em breve pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), analisamos uma série de dados e concluímos que a idade diferenciada para urbanos e rurais não se justifica.

Em países em desenvolvimento, a previdência é uma forma de proteção social que tem limites claros. Uma considerável parte da nossa força de trabalho está na informalidade e, portanto, não contribui e não conta com a proteção da previdência. A proteção social de algumas categorias específicas, como o trabalhador rural ou o agricultor familiar, é um desafio.

A despeito das dificuldades, o Brasil tem feito um bom trabalho na proteção social dos idosos ao criar uma sólida rede que vai além dos benefícios estritamente contributivos. Um dos elementos dessa rede é a previdência rural. Ela cobre trabalhadores rurais e agricultores familiares. Uma de suas características é permitir aposentadorias cinco anos mais cedo que para os trabalhadores urbanos, portanto, aos 60 anos (homens) e 55 anos (mulheres). Além disso, há o Benefício de Prestação Continuada, que cobre idosos (a partir dos 65 anos, para ambos os sexos) e deficientes pobres com um benefício assistencial.

De cada dez pessoas com 60 anos ou mais, oito recebem um benefício previdenciário ou assistencial. Essa rede de benefícios fez dos idosos o grupo etário mais protegido da pobreza no país. A taxa de extrema pobreza entre as pessoas de 65 anos ou mais é mais de quatro vezes menor que a média brasileira e mais de sete vezes menor que a taxa observada para crianças e adolescentes. É uma conquista para a sociedade brasileira, da qual não podemos abrir mão.

Essa conquista, entretanto, tem sido utilizada para defender traços do nosso modelo previdenciário que são pouco ou nada justificáveis. Alegando defender essas “conquistas sociais”, por exemplo, servidores públicos com altíssimos salários se posicionaram contra a reforma da Previdência (que, na verdade, limitava seus privilégios, como a aposentadoria pelo último salário). Também alegando defender conquistas sociais estão aqueles que atacam a introdução da idade mínima para a aposentadoria — mal disfarçando o fato de aposentadorias aos 52 ou 55 anos (para mulheres e homens, respectivamente), idades médias de aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, serem inaceitáveis em um país como o nosso.

Defender a unificação de regras para os setores público e privado ou a introdução da idade mínima, entretanto, tem sido razoavelmente consensual entre aqueles que percebem o tamanho do desafio previdenciário que temos à frente. Menor é o consenso em torno da necessidade de estabelecermos uma idade mínima de aposentadoria igual para homens e mulheres ou para trabalhadores urbanos e rurais. Trataremos, aqui, desse segundo ponto, deixando a diferença entre homens e mulheres para outra oportunidade.

Os argumentos contra unificar as idades de aposentadoria para trabalhadores urbanos e rurais parecem fazer sentido, até que se examine detidamente os dados disponíveis, o que fizemos no trabalho mencionado acima. Nele, examinamos os registros administrativos da Previdência Social para avaliar se aposentados rurais e urbanos tinham diferentes expectativas de vida. Também examinamos outras bases de dados, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e a Pesquisa Nacional de Saúde, ambas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para ver se os trabalhadores rurais eram um grupo proeminente entre os mais vulneráveis.

Os resultados que obtivemos não justificam que trabalhadores rurais se aposentem cinco anos antes dos trabalhadores urbanos. Com base nos registros administrativos da previdência social, estimamos funções de sobrevivência a partir dos 60 e dos 65 anos para aposentados das clientelas urbana e rural. Também ajustamos modelos de riscos proporcionais, para avaliar se os aposentados rurais estariam mais sujeitos ao risco de morrer que os aposentados urbanos. Acreditamos ter demonstrado, de maneira robusta, que o padrão de cessação dos benefícios por morte não é influenciado pela clientela (urbana ou rural).

Por outro lado, examinamos diversos indicadores sociais, como início precoce na vida laboral, extrema pobreza, baixo rendimento (abaixo do salário-mínimo) e não contribuição previdenciária. Também avaliamos diversos indicadores de saúde e acesso a serviços de saúde. Em nenhum deles — repetimos, em nenhum deles — a população rural compunha a maioria dos que estavam em situação vulnerável. Não nos pareceu, portanto, haver justificativa para defender idades de aposentadoria reduzidas para trabalhadores rurais com base no argumento de proteção contra vulnerabilidades sociais, já que a maioria dos afetados por essas mesmas vulnerabilidades vive em áreas urbanas.

Idade inferior para aposentadoria rural também é algo raro no resto do mundo, uma jabuticaba. Quando instituída no Brasil, na primeira metade da década de 1970, a previdência rural exigia cinco anos a mais para que os trabalhadores rurais pudessem se aposentar. Isso não fazia sentido. A Constituição de 1988 inverteu isso, sem que houvesse nenhuma evidência robusta para sustentar essa nova orientação. Caminhar na direção de uma idade única para a aposentadoria de trabalhadores urbanos e rurais é condizente com os dados disponíveis e com o princípio de equidade que deve nortear o desenho da previdência social no Brasil.

* Luis Henrique Paiva é pesquisador associado do IPC-IG (Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo) e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) de Brasília. Matheus Stivali é pesquisador do Ipea. Leonardo Alves Rangel é pesquisador do Ipea."


"Artigo publicado no Nexo Jornal em 1o. de setembro de 2018. https://bit.ly/2ozd0zt"